Por Cristiano Alves
O conspirólogo da Virgínia, guru do presidente Jair Bolsonaro e da direita neocon brasileira escolheu um péssimo momento para lembrar de Yuriy Bezmenov, pois neste momento há outras pessoas interessadas em saber quem é o James Bond tchekista que fugiu para a ensolarada terra da liberdade, a América, os russos! Ao contrário do jornalismo brasileiro, que em muitas matérias é bastante superficial, muitos russos foram atrás de saber quem é o tal "espião do KGB" e não encontraram absolutamente nada sobre ele nem em fundações liberais antissoviéticas como o Memorial, nem no Museu da Repressão Política de São Petersburgo e menos ainda nos arquivos do KGB (Comitê de Segurança do Estado) desclassificados pelo FSB (Serviço Federal de Segurança). De todo jeito, solicitei informações sobre o tal desertor ao historiador Yegor Yakovlyev, especialista e popularizador de história, mas encontrei um artigo bastante esclarecedor de uma blogueira russa chamada Alina Brazdeykene (aparentemente um pseudônimo), que escreveu um artigo bastante elucidativo sobre o "James Bond que fugiu da URSS".
O Call of Duty de 2019 atribui aos russos crimes contra a humanidade cometidos por forças militares americanas na ocupação do Iraque, na qual o bombardeio de um engarrafamento causou a morte de milhares de civis inocentes, no videogame americano esse ato criminoso é, via arte, atribuído... aos russos, comandados por um celerado, um general que usa nos ombros platinas de coronel.
O grande vilão da versão de 2019 de Call of Duty é um general que usa platinas de coronel
É preciso entender que hoje a juventude ocidental já é educada no sentido de que a Segunda Guerra Mundial foi iniciada pelos russos, e a oriental, precisamente japonesa, no sentido de que a bomba atômica foi lançada no Japão pela... União Soviética. Para quê ler livros de história quando se pode aprender história assistindo a filmes e jogando video games?!
E o que nos propõe dessa vez a Activision? A versão da história que nos é oferecida na nova parte é a seguinte: o vídeo usa trechos de uma entrevista real com Yuri Bezmenov, um agente da KGB que fugiu para o Ocidente, que fala sobre as táticas de enfraquecimento dos regimes estatais. Surpreendentemente, além das palavras do próprio Bezmenov, a blogueira russa Alina Brazdeykene não conseguiu encontrar nenhuma confirmação de que ele realmente trabalhava para a KGB. Lembremos que de acordo com o próprio Bezmenov, ele não era um mero "colaborador" ou "garoto de recados", ele era um agente de alto nível que lidava com estrangeiros e "subvertia a Índia inteira", nem Putin chegou a tanto na agência comunista!
As táticas de que ele fala foram supostamente usadas pela URSS para enfraquecer ou subjugar outros estados. Lemos um breve resumo disso na versão russa da Wikipedia:
“Religião - politizar, comercializar, reduzir ao entretenimento. Educação - universalidade (nivelamento da educação da elite), não forma um "sistema de coordenadas". Saúde - esportes, saúde (prejudicar), fast food. Trabalho - sindicatos contra a sociedade ”
Nessas horas, os neocons vão ao delírio: "Vejam só, ele avisou, Black Live Matters é plano comunista, eles tem até uma comuna em Seattle, movimento LGBT, 20 anos de desmoralização do Ocidente, isso significa que muito em breve vamos ter comissários comunistas prontos para tirar você a força da sua cama, os comunistas estão chegando!", "Olavo de Carvalho tinha razão!".
Diante dessa guerra de informação, os americanos devem saber que não é sua economia capitalista ou os interesses de classe das elites americanas os culpados pela sua monstruosa estratificação social, a incapacidade de usar o sistema de saúde, a brutalidade política, a segregação e a discriminação, etc. Todos esses problemas são culpa do comunismo soviético que acabou há mais de 30 anos! É culpa da esquerda! Eles estão sacudindo o barco quando falam em igualdade, condições de trabalho decentes e disponibilidade de bens públicos.
Talvez alguém diga, "Para quê falar de um jogo desses? Isso é só um jogo, isso não vai formar opinião política". CoD Modern Warfare foi lançado em outubro de 2019 e no final do mês quase 5 milhões de pessoas já haviam jogado.
Então Modern Warfare, em mais uma tentativa de jogar uma longa lista de crimes de guerra dos americanos para os russos (e do contexto segue-se que nos soviéticos) foi só um aquecimento com a "moralidade cinzenta" como característica especial. Em breve, um novo livro de história da Activision estará chegando, e toda uma geração crescerá com esse “livro”, enquanto os militares dos EUA continuarão a usar esses videogames como campanha de recrutamento.
Esse mesmo livro da Activision cortou pedaços da crônica da Praça da Paz Celestial do trailer, porque isso poderia prejudicar as vendas na China, um mercado consumidor de centenas de milhões!
Nessa mesma Activision, cujo diretor-executivo Bobby Kotick ganha US$ 30 milhões por ano e mesmo assim realiza verdadeiros expurgos (no ano passado 800 pessoas foram demitidas, apesar dos lucros corporativos colossais), demissões e políticas de austeridade, e funcionários comuns sobrevivem de salário em salário e serão demitidos se tentarem organizar um sindicato.
A entrevista de Bezmenov
Depois do chocante trailer, vale a pena ver a entrevista original de Bezmenov, você não irá se arrepender. Que personagem!
O entrevistador imediatamente apresenta um trunfo para os comunistas tão malvados:
eu nunca tive nenhum problema com o governo ou a polícia.
Isto é, por outras palavras, eu desfrutava ou tinha todas as razões para desfrutar
de todas as vantagens do chamado sistema socialista.
"Mas nós sabemos com certeza a partir de várias fontes,"
"que a cada época concreta há entre 25 e 30 milhões de cidadãos soviéticos,"
Como já dizia o famoso blogueiro Dmitriy Puchkov, mais conhecido como Goblin, ironizando o antissovietismo: "na época soviética metade do país sentava atrás das grades e a outra vigiava". Para quem não sabe, 30 milhões é quase a população total do Estado de São Paulo.
Por incrível que pareça, no mesmo ano de 1984, quando esta entrevista foi filmada, Anton Antonov-Ovseenko (no futuro - o primeiro diretor do Museu do GULAG) fez uma declaração sobre 20 milhões de pessoas que estavam no Gulag. Ainda não foi possível saber ao certo quem o emprestou de quem primeiro.
Depois a entrevista fica ainda melhor. Uma série de histórias interessantes se segue. Bezmenov argumenta, por exemplo, que o KGB se beneficia quando os americanos fazem meditação, pois isso os distrai dos problemas reais urgentes. Bezmenov diz que os americanos são ingênuos e estúpidos se fizerem ioga ou seguirem gurus, porque assim se tornam uma vítima fácil dos malditos vermelhos. Precisamos de um meme urgente: "VOCÊ MEDITA? É COMUNISTA!"
Karl Marx escreveu em suas obras que a religião "é o suspiro do oprimido, é o ópio do povo", logo nada mais conveniente aos malvados soviéticos promover... a religião!
Porque você está vendo, uma pessoa que é muito interessada em meditação...
ensina aos americanos, é que a maioria dos problemas
pode ser resolvida simplesmente meditando.
E é exatamente isso que o KGB
e a propaganda marxista-leninista quer dos americanos.
Parece que o entrevistador já estava começando a ficar tenso. Mas ele nem mesmo suspeitou do que ainda estava por vir.
Yuri continua dizendo que seu trabalho na "Novosti" (principal agência de notícias da União Soviética) era manter os hóspedes estrangeiros que lhe eram confiados constantemente bêbados. Por quê? Porque estando bebuns o país parecia uma maravilha. Claro, não surpreende que a URSS tenha entrado em colapso após a introdução da Lei Seca sob Gorbachev em 85: as pessoas ficaram sóbrias.
E quando os estrangeiros se tornaram complacentes e não conseguiam mais se lembrar do que disseram ou fizeram ontem, eram forçados a fazer declarações em favor da União Soviética. Chega a dar medo imaginar o que eles faziam com quem não bebia... Yuri, claro, também fingiu beber, mas na verdade foi apenas um disfarce para sua operação diabólica do KGB.
‘As a Soviet student, he was required to take compulsory military training in which he was taught how to play "strategic war games" using the maps of foreign countries, as well as how to interrogate prisoners of war’
'Como um estudante soviético, ele foi obrigado a fazer o treinamento militar obrigatório no qual foi ensinado a jogar "jogos de guerra estratégicos" usando os mapas de países estrangeiros, bem como interrogar prisioneiros de guerra'
Temos ainda outras citações tais como:
‘Bezmenov was directed to slowly but surely establish the Soviet sphere of influence in India’.
“Bezmenov foi orientado a estabelecer lentamente, mas de forma segura a esfera de influência soviética na Índia”.
E isso por que ele tinha se formado na universidade soviética há poucos anos. Não dá para entender exatamente a situação: ou a educação soviética era tão eficaz que um graduado universitário poderia sozinho manter uma região inteira com 700 milhões de pessoas sob seu controle, ou em um estado misantrópico essa universidade atribuía tal fardo aos ombros frágeis de um graduado. Ou ainda, numa outra hipótese, Yuriy Bezmenov tinha um mesmo carisma e poder de soft power de um Airtom Senna, uma Princesa Daiana ou mesmo uma Madonna, para fazer tanto sucesso na Índia. Seria bom se alguma olavette da seita do astrólogo embusteiro algum seguidor do professor Olavo de Carvalho pudesse nos dar uma resposta satisfatória, coerente, lógica e racial. Gostaríamos de saber mais sobre o assunto, pois quem sabe a educação soviética era tão boa, mas tão boa, que nem mesmo os mais fervorosos comunistas sabiam disso!
Mas para que o grau de horror da entrevista não diminua, Yuri fala sobre a opressão do povo soviético com a ajuda de uma autorização de residência e mostra documentos secretos: o seu passaporte. Passaporte como "documento secreto" é uma grande novidade para todos nós.
Esse é o meu passaporte.
Ele também demonstra a minha nacionalidade e tem um carimbo policial,
que se chama "propiska" em russo
e determina a minha zona de habitação.
Eu não posso deixar essa zona.
É o mesmo caso com esse negro
que não pode deixar a sua zona na África do Sul.
Para quem não sabe, até os dias atuais na Rússia, toda pessoa que se encontra no país deve ter a sua "propiska", isto é, um "registro". A "propiska" estabelece que você mora em uma determinada cidade e que só pode trabalhar legalmente naquela cidade e votar naquela mesma cidade. Assim, na Rússia, um cidadão nascido na Rússia, filho de pais russos, corre o risco de se tornar "ilegal" em seu próprio país se nasceu em Moscou e vai para São Petersburgo, a menos que ele compre um imóvel ou se case com alguém daquela cidade, e isso explica em parte o grande número de casamentos arranjados na antiga URSS e na Rússia hoje, bem como o alto número de divórcios. Ao contrário do Brasil, no qual alguém do Rio pode arranjar emprego em São Paulo tranquilamente, ou um sulista "tomar a vaga" de um nordestino passando num concurso público, isso não é possível na Rússia. Malvadão esse comunismo, hein? Bem, há outros países, inclusive na União Europeia capitalista, nos quais o mesmo sistema é vigente, por exemplo a Suécia, uma monarquia, um sueco de Upsala pode ser tornar "ilegal" em Estocolmo por que não está inscrito e registrado naquela urbes. Porém, quando um sujeito que sempre viveu "as benesses do socialismo" se compara a um negro vivendo sob o regime do Apartheid, esse é um espetáculo a parte!
Vale lembrar que não existe nenhuma decisão da ONU ou qualquer resolução de alguma organização de direitos humanos, seja de direita ou de esquerda, que considere o sistema de "propiska" (registro) como sendo uma violação dos direitos humanos, crime contra a humanidade ou política segregacionista, muito menos na Rússia não há qualquer movimento político expressivo, nem mesmo o de Aleksey Navalniy, interessado em abolí-lo.
No meio da entrevista, as teorias da conspiração de Bezmenov estão se desenrolam muito bem. Ele diz:
- Se que um jornalista americano que falasse mal da URSS seria despedido pela sua redação (americana!);
- Que a URSS ainda não entrou em colapso só porque os imperialistas a apoiam - e eles precisam parar de fazê-lo;
- Que no próprio país não há uma única pessoa que apoie este terrível sistema;
- Que os estudantes de intercâmbio na URSS eram na verdade membros de grupos terroristas em seus respectivos países;
- Que o Dia da Vitória não é um feriado, mas um dia de luto nacional;
- Que os jardins de infância que foram mostrados a convidados estrangeiros não são reais;
- Que casamentos vistos por estrangeiros são falsos;
O próprio Bezmenov tinha várias esposas falsas, com quem o departamento de pessoal o forçou a se casar, aparentemente, o filho de uma dessas esposas também era falso. A entrevista também contém reflexões de Yuri de que fugir com sua esposa e filho pequeno era muito problemático, então ele fugiu sozinho, abandonando sua família;
- Que os parquinhos da foto de uma reportagem estrangeira sobre a URSS (espere aqui) nada mais são do que um pátio de prisão (!) para crianças (!!!) de presos políticos. Isso mesmo, há uma prisão para os presos políticos e uma prisão separada para seus filhos. O problema é que na foto nós não vemos os guardas com metralhadoras e o arame farpado.
A entrevista de Yuriy Bezmenov foi prevista ainda nos anos 50 pelo grande escritor brasileiro Graciliano Ramos, autor de "Viagens", que traz crônicas de sua visita à Tchecoeslováquia e União Soviética. Ele descreve muito bem a URSS, no final ironiza: "no Ocidente irão dizer que todos que eu vi na realidade são atores, que tudo aquilo é arranjado pela propaganda comunista".
Falando em propaganda, é curioso notar que nos anos 70 e 80 praticamente todos os oficiais do KGB, senão todos, eram membros do Partido Comunista, era um pré-requisito para fazer parte da Nomenklatura, isto é, aqueles que podiam fazer parte do poder, a "aristocracia vermelha". Na entrevista de Bezmenov ele deixa a entender que era um oficial do KGB, dada a sua alta responsabilidade, curiosamente não encontramos seu nome na lista de ex-membros do partido comunista.
Ainda mais uma outra evidência de que o nosso amiguinho russo mentiu sobre seu suposto passado no KGB, os agentes do KGB que sabiam demais e desertavam sempre têm um destino trágico, assim se deu com o agente Agabekov, que por causa de uma namorada britânica desertou de Istambul para Paris, em 1937, uma armadilha montada pelo então NKVD o levou para um mestre cuteleiro turco que o dilacerou e esquartejou-o em picadinhos. Trotskiy, outro famoso desertor, ameaçou em 1940 revelar muitos segredos da URSS ao Comitê Dies, dos Estados Unidos, seu fim: morto com uma picaretada na cabeça. Mas com Yuriy Bezmenov, que fugiu para os Estados Unidos, aliás, segundo o próprio, também por causa de uma mulher (parece que desertores russos fogem mesmo é das mulheres russas!), não aconteceu absolutamente nada! Essa é mais uma evidência de que mesmo se ele um dia foi do KGB seu posto era muito baixo e pouco significante para a agência e seus contos não passam invencionisse.
Mas quem precisa disso?
Termina a entrevista que é um prato cheio para um conspiracionista direitóide pessoa inteligente que se livrou daquele professor de história esquerdista. As conclusões são:
- Todos os militantes por (quaisquer) direitos são idiotas, lixo, ou prostitutas políticas (e aqui não estou exagerando);
- A América está em conluio comunista com a URSS e isso ameaça a liberdade americana;
- O socialismo é quando todo o país dorme numa cama de arame ou está no GULAG;
- Socialismo é nazismo;
Talvez. Em 1984, houve uma corrida presidencial entre Reagan e Mondale, na qual este último defendeu o congelamento dos programas nucleares dos Estados Unidos e da URSS, uma emenda pela igualdade de direitos e contra a economia de Reagan, que custava caro para o orçamento do Estado. Este é o mesmo Mondale que Bezmenov usa como espantalho na versão completa da citação emprestada para o trailer. Alerta de spoiler: Reagan venceu e concorreu a um segundo mandato.
No Brasil, país no qual os comunistas jamais ocuparam sequer 3% do parlamento, políticos de direita e extrema-direita repetem ad infinitum sobre comunismo e GULAG, para que até um protesto contra uma calçada esburacada, por educação, reforma agrária ou urbana virem "coisa de comunista", e afinal de contas os comunistas "mataram milhões". Lembremos como às vésperas das eleições de 2018, disparos no Whatsapp foram feitos para pelo menos 5 milhões de brasileiros contendo um recorte de Cristiano Alves, com uma foice e o martelo desenhada com ossos, veiculadas por redes sociais e aplicativos de mensagens para evocar uma suposta "ameaça comunista".
É claro que é só mera coincidência que toda vez que alguém precisa ganhar uma eleição (repare que a próxima eleição nos EUA é em novembro de 2020) ou impedir que as pessoas pensem sobre sua situação, o fantasma do comunismo é tirado do armário!
Retirar é fácil. O problema é colocá-lo de volta!