sexta-feira, agosto 15, 2025

De Heinz Christen a René Júnior: as lições centenárias de um escritor soviético sobre sociedades doentias

Essa semana, a sociedade brasileira foi chocada por um acontecimento trágico. Um psicopata, armado, assassinou a sangue frio um operário que fazia o seu trabalho. Naturalmente, René da Silva Nogueira Junior não se definia dessa forma, ele se apresentava nas redes sociais como um "CEO cristão, marido e patriota", e a sociedade o via como um "cidadão de bem", o "modelo de sucesso" numa sociedade extremamente materialista onde cada um é julgado segundo os bens que acumulou. A vítima do crime era um operário, pai de família, Laudemir de Souza Fernandes, gari, um lixeiro, mas a sociedade em que vivia vai um pouco mais além, era um "lixo" e por isso sua vida tinha menos valor do que o caminhão que dirigia ou a vassoura que carregava. O motivo do assassinato - o mais fútil possível, o caminhão que recolhia o lixo estava na frente do seu precioso automóvel.

Certa vez, um escritor soviético escreveu um artigo chamado "Humanismo proletário", nele o comunista Alexei Maximovich Peshkov, mais conhecido pelo pseudônimo de "Maxim Gorkiy" (que literalmente significa "Maximamente Amargo", ou talvez uma referência à famosa metralhadora Maxim, mas que dispara o amargo) discutia frases que já em seu tempo, o início do século XX, ressoavam na boca de muitos: "o mundo está doente", "o mundo enlouqueceu". Gorkiy escrevia que "humanidade", "compaixão", "generosidade" são sentimentos não aplicáveis à realidade, já que são difíceis de transformar em mercadoria pois não encontram clientes e prejudicam o crescimento dos lucros comerciais e industriais. Afinal, generosidade não rende dividendos no banco, não pode ser trocada por bitcoins e nem serve para comprar um automóvel elétrico. 

Cenas como a que o Brasil viu recentemente não são nenhuma novidade, será que alguém lembra quando o famoso jornalista Boris Casoy, antigo integrante do CCC, ridicularizou garis que lhe desejaram "Feliz Natal!" ao vivo? Num passado não muito distante, os anos 50, surgiu uma denúncia de que indígenas foram usados como alvos para a prática de tiro, tragédia que foi recapitulada pelo cineasta italiano Sergio Corbucci pela sua genial e profunda obra-prima de faroeste italiano "Django", de 1963. 

Numa sociedade em que possuir um automóvel é quase uma obrigação para alguém que se considera minimamente digno de se considerar um "ser humano", este item de consumo tem um caráter quase sacrossanto. Nas estradas de muitas cidades do Brasil, alguém que respeita o limite de velocidade é frequentemente perturbado por luzes altas ou buzina de indivíduos "apressadinhos" que consideram como um enorme insulto à sua dignidade e status social, à marca de seu automóvel, ter em sua frente um "idiota" que respeita o limite de velocidade e não lhe abre passagem, como se este fosse alguma espécie de dignatário de renome internacional. Não é raro que tais ocorridos gerem "rixas" e até resultem em assassinatos, como ocorreu em Fortaleza, onde um advogado matou a sangue frio um motorista com quem se desentendeu; no Rio, onde um motorista de uma veículo importado alemão executou um motociclista, ou em São Paulo onde um promotor atropelou vários ciclistas que estavam à frente de seu carro. 

Por que será que tais indivíduos, cuja avaliação cabe a um psiquiatra, estão tão apressados? Dizendo-se cristãos, eles estão indo a um encontro com Jesus Cristo? Talvez são profissionais apressados para desarmar uma bomba nuclear? Mesmo em países como a Alemanha, onde a pontualidade é uma relevante regra social, onde carros possuem marcas famosas no mundo inteiro e as estradas permitem ultrapassar os 200km/h, não se percebe tamanhas aberrações no trânsito.

Aliás, falando em Alemanha, Maxim Gorkiy, ainda nos anos 30, nos advertiu para um problema que aconteceu naquele país, que então tinha como símbolo de "sucesso social" não automóveis, mas a farda de organizações nazistas. Gorkiy nos conta no "Humanismo proletário" como Heinz Christen, um adolescente de 14 anos, matou seu amigo Fritz Walkenhorst, um garoto de 13 anos. O assassino contou friamente que cavou um túmulo para seu amigo com antecedência, jogou-o lá vivo e manteve-o com o rosto na areia até que Valkenhorst moresse sufocado. Ele motivou o assassinato dizendo que queria muito ficar com o uniforme de soldado de Hitler que pertencia a Valkenhorst. Isso aconteceu no início do século XX, mas no início do século XXI percebemos que pouca coisa mudou. No Brasil em vez de crianças temos dois adultos, ambos considerados pais de família, mas um deles com dignidade moral e valores em falta na sociedade, foi executado por um motivo absurdamente fútil - "ele estava na frente do carro de um príncipe do sucesso". 

Na época de Gorkiy a Alemanha nazista ainda não possuía campos de extermínio e nem havia invadido ainda praticamente toda a Europa. Havia uma sociedade que valorizava a "raça superior" e seus atributos (no caso o uniforme ou distintivo do NSDAP). No Brasil temos uma sociedade diferente, mas com muita coisa em comum, um sociedade capitalista extremamente materialista, consumista, pautada noutro tipo de racismo, não racial, mas social! Ao contrário de muitos países desenvolvidos, que costumam investir no transporte público, muitos brasileiros contraem empréstimos para comprar automóveis, gastando até o último centavo de suas poupanças, se é que tem alguma, para assim serem aceitos como "gente de bem". Costuma-se dizer que "brasileiro adora carro", quando na realidade o que ele adora é o impacto social causado por um.

Longe de querer discutir armas de fogo, um advogado que matou outro motorista em Fortaleza usou uma chave de fenda, o promotor que atropelou ciclistas em São Paulo usou seu próprio veículo como arma, o problema definitivamente não está nas armas de fogo, na região ou na cor do agressor, o problema é uma grande doença social chamada capitalismo, que enquanto existir irá fuzilar, atropelar ou estocar muitas pessoas como Laudemir de Souza Fernandes. 

A história da "doença" do capitalismo, como ensinou Gorkiy, começou quase imediatamente após a burguesia arrancar o poder das mãos dos senhores feudais desgastados. Acerca dessa doença escreveram nomes eminentes como Nietsche, Marx, Engels e outros pensadores, mas para quê estudar filosofia se isso é "mera perda de tempo que não gera dividendos na bolsa" como nos ensinam coaches infantis em podcasts? Para quê falar em generosidade, humanidade e compaixão numa sociedade que cultua o consumo e um outro "ismo" que Gorkiy criticou ainda nos anos 30?

domingo, junho 22, 2025

Nazismo é um tipo de socialismo?

Por Cristiano Alves (Kristianograd)

Símbolo da Sociedade Thule de magia negra, precursora do partido nazista


Materiais compartilhados por aplicativos de mensagens, sem qualquer crivo científico ou pesquisa aprofundada, frequentemente disseminam o mito de que comunismo e nazismo são "farinha do mesmo saco", atestando a ignorância de grupos de extrema-direita com relação a questões político-ideológicas e históricas.

O clássico argumento da direita sustenta que "se nazismo significa nacional-socialismo, logo é socialismo". Por tal raciocínio leviano pode-se concluir que o Mar Vermelho tem a cor de sangue, o Mar Negro tema cor de piche e a Companhia Negra de Geyer Flórian era formada por africanos. Curiosamente, essa idiocracia omite o fato de que "Brasil" vem de "brasa", que tem cor avermelhada, e berra que "a nossa bandeira jamais será vermelha" (embora vários toponímicos como "guará" e o próprio nome Brasil estejam mais relacionados a vermelho do que ao verde-amarelo).

No que tange ao nazismo, artigo científico de Vassiliy Saizev define o nacional-socialismo (nazismo) como 

...uma ideologia radical, antissemita, racista, anticomunista e antidemocrática. Suas raízes remontam ao Movimento Popular (Völkische Bewegung), que surgiu na década de 1880 no Império Alemão e na Áustria-Hungria. Desde 1919, após a Primeira Guerra Mundial, o Nacional-Socialismo se tornou um movimento político independente nos países de língua alemã. Assim como o fascismo, que chegou ao poder na Itália em 1922, o objetivo do Nacional-Socialismo era criar um Estado autoritário sob um único líder (autoritärer Führerstaat) – o Führer. A diferença entre a ideologia alemã e o fascismo era seu extremo antissemitismo.

A partir de 1879, antissemitas alemães organizaram vários partidos e grupos políticos de inspiração antissemítica, saudosista e ocultista, dentre as quais a "Liga do Martelo do Reich" (Reichshammerbund), a "Associação contra a Arrogância do Judaísmo" (Verband gegen die Überhebung des Judentums) ou a "Ordem Secreta dos Alemães" (der geheime Germanenorden). No ano de 1918, surgiu a "Sociedade Thule" de Munique, publicando a revista "Observador de Munique" (Münchner Beobachter) com o símbolo da suástica na capa. Em 1919, a revista foi renomeada para "Observador do Povo" (Völkischer Beobachter). A ideia de um novo Reich, o III, partia de uma ideia saudosista de resgatar a grandeza do Sacro Império Romano-Germânico (I Reich) e de dar continuidade ao Império Alemão surgido após a unificação, o II Reich. Ideias de recriação de "grandes impérios do passado" são estranhas à filosofia marxista-leninista, bem como ao pensamento das correntes socialistas utópicas do século XIX.

Ao contrário da filosofia marxista, baseada no materialismo histórico, a Sociedade Thule, precursora do Partido Nazista, buscava inspiração no misticismo, no ocultismo, na magia negra, sua base era a metafísica, o que em parte explica a obsessão de Hitler por artefatos como o Santo Graal, a Lança de Longino e outros, buscados por renomados arqueólogos nos locais mais remotos da Terra. 

Os partidários da Sociedade Thule e mais tarde do NSDAP (partido nazista) rejeitavam a ideia de "luta de classes" em prol da ideia de que a força que move a história são as sociedades secretas: os illuminati, os cátaros, a maçonaria, a seita Moon, o KKK e até os Skull&Bones seriam os verdadeiros agentes da história. A crença em antigos mitos persas, germânicos, celtas e teutônicos não possui absolutamente nenhuma relação com a filosofia marxista e mesmo com a filosofia dos chamados socialistas utópicos, mas está presente em quase todos os movimentos neonazistas dos nossos dias, sendo um exemplo clássico o neopaganismo abertamente cultuado nas fileiras das Forças Armadas da Ucrânia (ZSU) e das organizações de emigrados ucranianos no Canadá, adeptos da seita neopagã RUN Vira.

Após a Revolução de Outubro de 1917 e a subsequente guerra civil, refugiados da Rússia criaram células anticomunistas e equiparavam os comunistas aos judeus, foi nesse momento que surgiu a expressão "bolchevismo judaico". Esses refugiados eram em geral elites e oficiais reacionários que ajudaram a disseminar a teoria da conspiração de um "judaísmo mundial todo-poderoso". Criaram também a chamada "Organização da Reconstrução" (Wirtschaftliche Aufbau-Vereinigung), que apoiava ideológica e financeiramente o partido NSDAP. Todos esses grupos se fundiram em um grande movimento nacional-socialista. O antissemitismo os uniu fortemente, temperado com objetivos imperialistas e racistas.

As ideias antissemitas e racistas de Hitler não eram nenhuma novidade, tais axiomas já haviam sido deduzidos no século XIX e início do século XX, ápice do colonialismo, por teóricos raciais (por exemplo, Goubineau, Francis Galton, Ernst Haeckel, Alfred Ploetz ou Wilhelm Schallmayer). Hitler inovou ao falar em "higiene racial" como programa político. Para o famoso pintor austríaco, a preservação da raça a principal tarefa do Estado.

Isso significava a esterilização obrigatória de pessoas com defeitos genéticos e aleijados, além de diversos benefícios para as "famílias alemãs decentes". Isso levou posteriormente ao extermínio de mais de 70.000 deficientes e alemães com doenças mentais. Aqueles com a "maior pureza racial" deveriam receber um "certificado de assentamento" e se estabelecer nas colônias capturadas. Hitler enfatizou especialmente que um Estado que apoia seus melhores elementos raciais deve invariavelmente se tornar o governante da Terra, deixando claro o seu nítido viés colonial-imperialista, que em muito se inspirava nas campanhas do Império Britânico e dos Estados Unidos contra os povos "menos civilizados". Hitler, como descreveu o professor russo Yegor Yakovlyev, era um "germânico que queria ser anglossaxão".

Enquanto os escritos do líder comunista Lenin condenam abertamente o antissemitismo, como forma da classe dominante de implodir a unidade dos trabalhadores, Hitler descreve os judeus como mendigos, parasitas, micróbios, sanguessugas, fungos de fissura, ratos, etc. O "judaísmo", em todas as suas formas, buscava "decompor", "bastardizar" (Bastardisierung) e "envenenar o sangue" do povo alemão, escreveu ele. Para esse propósito, acreditava Hitler, os judeus recorriam à "prostituição", à disseminação de doenças venéreas e à sedução de meninas arianas inocentes. Hitler atribuiu os males do mundo como a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa, a inflação, aos ardis do "Judaísmo Mundial". Ele incluiu nas fileiras deste último tanto o "capital financeiro" dos EUA quanto, sem ver qualquer contradição nisso, seu oponente político, o "bolchevismo".

No segundo volume de "Mein Kampf", Hitler já escrevia abertamente sobre a necessidade de exterminar os judeus: 

"Se durante a guerra 12 ou 15 mil desses judeus poluidores do povo tivessem sido submetidos a gás mostarda, assim como centenas de milhares de nossos melhores trabalhadores alemães de todas as classes e profissões que foram forçados a suportá-lo, seus milhões de vítimas não teriam sido em vão. Pelo contrário, 12 mil bandidos removidos a tempo provavelmente teriam ajudado a salvar um milhão de alemães decentes, necessários para o futuro." E essa tarefa, na opinião de Hitler, lhe foi confiada pelo próprio Deus: "Ao me livrar do judeu, estou fazendo a obra do Senhor", escreveu ele. 

Hitler não acreditava que membros de famílias judias também servissem na frente de batalha e, portanto, estivessem sujeitos a ataques com gás. Seu amigo e mentor, Dietrich Eckart, acreditava tão firmemente nessa ideia, inventada pelos próprios nazistas, que declarou que pagaria mil marcos a qualquer pessoa que conseguisse o nome de uma família judia cujos filhos tivessem servido no front por mais de três semanas. Quando o rabino Samuel Freund nomeou vinte dessas famílias, Dietrich se recusou a pagar. O rabino entrou com uma ação judicial, na qual nomeou outras cinquenta famílias. Nas famílias nomeadas, até sete filhos serviram, dos quais até três morreram em batalha. Eckart perdeu o caso e foi forçado a pagar o valor.

O sociólogo alemão Max Horkheimer escreveu em 1939 que o fascismo é equivalente ao capitalismo. O historiador Manfred Weissbecker chamou o nome do partido NSDAP de pura demagogia, já que não era nacionalista nem socialista, mas puramente fascista. É importante enfatizar que o programa econômico do III Reich não foi elaborado por Adolf Hitler, mas sim por Albert Speer, que liderava uma organização de grandes empresários alemães. 

O historiador e economista britânico Antony C. Sutton acredita que o Partido Nazista era apoiado por bancos americanos. O economista ítalo-americano Guido Giacomo Preparata compartilha dessa opinião. O partido, que não tinha dinheiro nem mesmo para um congresso no verão de 1928 e depois perdeu as eleições, reuniu cerca de 200 mil membros em trens especialmente encomendados de toda a Alemanha no verão de 1929 e os levou até Nuremberg.

De fato, no partido havia uma facção socialista liderada por Gregor Strasser até 1930, mas ele e seus camaradas deixaram o partido e mesmo foram reprimidos no regime hitlerista. A ideologia do partido continha alguns elementos de anticapitalismo, mas sempre subordinadas ao viés antissemita. 

O cientista político Franz Neumann escreveu que o nacional-socialismo não se libertou da produção capitalista privada, mas, pelo contrário, criou o “capitalismo monopolista totalitário”. O próprio Hitler se manifestou a favor da propriedade privada já em 1919, em conversas privadas, e em 1926, publicamente, durante um discurso no Clube Nacional de Hamburgo. Em 26 de junho de 1944, em um discurso diante de figuras importantes da indústria militar, Albert Speer e Adolf Hitler prometeram que "após a vitória, uma grande era viria para a iniciativa privada na indústria alemã". Apesar disso, Hitler não era um adepto do livre mercado, embora não defendesse uma ditadura do proletariado, ainda que alemão. Sua ideologia também não era a favor da nacionalização da produção. A Alemanha de Hitler pode ser vista como uma Alemanha na qual o poder dos grandes bancos foi repassado para a indústria armamentista.

O programa do NSDAP pôs em prática alguns princípios assistencialistas, mas ao contrário do marxismo, que promete igualdade social aos trabalhadores, esse programa estava subordinado ao princípio de homogeneidade étnica. Houve tentativas de colocar essa promessa em prática, mas somente no Serviço de Trabalho do Reich (Reichsarbeitsdienst), na Juventude Hitlerista e no exército (Wehrmacht). 

Esses fatos, atestados até mesmo pelos trabalhos mais medíocres sobre o III Reich, refutam completamente o mito de que "socialismo e nazismo são irmãos gêmeos", mitos estes que levam o povo à ignorância e à manipulação dos defensores da mais cruel forma de capitalismo

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