Por Cristiano Alves
Tsirk foi um filme soviético de 1936 que fazia o público rir, discutia temas como o racismo e o sexismo, e ainda ridicularizava preconceituosos e racistas, estrelado pela maior atriz da União Soviética
A sociedade brasileira tem enfrentado sérios problemas no campo humorístico ultimamente. Mais consciente, ela tem se deparado com elementos daninhos à sociedade a ao humor nas chamadas "comédias stand-up", cujo picadeiro tem se tornado um palanque para racistas, machistas e anticomunistas. Um bom exemplo disso é o "humor" de Danilo Gentili, que ridiculariza grupos historicamente oprimidos, zomba de nordestinos, compara reais heroínas da sociedade brasileira a um ator pornô e evoca termos racistas empregados para clamar a inferioridade racial do negro, a quem Gentili, que de gentil nada tem, chama de "macaco". Além desse tipo de "humor", no cinema ele ganha uma conotação cada vez mais grotesca, com comédias voltadas para a pornografia, para o estilo Adam Sandler, sempre a contar-nos "como é grande o seu falo", e, pior que isso, humor que une tudo isso mais narcóticos, o que levou uma colega russa, também do campo jurídico, a classificar tal humor como "para pessoas de intelecto inferior". Mas nem sempre as coisas foram assim!
Tsirk(literalmente, "O circo"), é uma comédia soviética de 1936 estrelada pela célebre atriz e cantora soviética Lyubov Orlova, cujos papéis descreviam as ideias do sistema social socialista, ela interpretava a operária que motivava a fábrica, a mãe solteira, a cientista idealista que queria melhorar a vida de seu povo, dentre outros. Lyubov Orlova era conhecida pelo seu carisma e pelos seus papéis de humor, de modo que por analogia não seria exagero descrevê-la como "a Whoopi Goldberg russa". É conhecido também que ela era a atriz favorita do premier soviético Josef Stalin.
A célebre atriz soviética Lyubov Orlova protagonizou em Tsirk o papel de Marion Dickson, uma americana branca perseguida por ter dado a luz a um bebê negro |
A comédia gira em torno de um circo e embora se trate de uma comédia, nem por isso a sua temática perde a seriedade. Logo no início, há uma clara sátira à imprensa sensacionalista americana e ocidental, um jornal nos diz que "A mulher-bala Marion Dixon(L. Orlova) é alvo de um sensacional escândalo". Um trem segue nos trilhos e uma mulher desesperada corre de uma multidão enfurecida que quer linchá-la e grita histericamente, exibindo o jornal burguês. A "criminosa" a correr é Marion, seu crime - ter dado a luz a um bebê negro(James Patterson)! Nessa época, os EUA viviam sob o regime ditatorial da Lei Jim Crow, que segregava o país em diferentes raças. Durante o Jim Crow, casar-se com alguém de outra "raça" era punível com a cadeia na maioria dos estados americanos e filhos mestiços não tinham direito aos serviços do Estado. Nessa época, para uma mulher, o pior insulto era ser chamada de nigger lover(amante de crioulos), pior do que ser chamada de prostituta.
James Patterson(1933-) como cadete da escola naval das forças armadas da URSS em 1949 |
Depois de muitas trapalhadas e ciúmes, durante uma das apresentações de Marion, o alemão resolve causar um escândalo no circo, ele divulga o "terrível segredo" de Marion: "Esta mulher... ela foi amante de um negro!!!" E para reforçar suas palavras, ele apresenta ao público soviético o bebê de Marion. Ao fazer seu escândalo, rapidamente o diretor do circo, soviético, pergunta qual o problema nisso. Ele inicia um discurso racista e o bebê negro, o ator e hoje poeta James Patterson, foge para as arquibancadas. Lá os soviéticos acolhem o bebê e o alemão corre desesperado para buscá-lo, mas os camaradas o protegem e riem de von Kneishitz, ele olha raivosamente e não entende, continua tentando pegar o bebê, que sorri nos braços dos cidadãos soviéticos, ele adota uma postura agressiva até um militar comunista se interpor em seu caminho. No decorrer da brincadeira, os soviéticos gargalham do racista, que acabou se convertendo no palhaço da vez! O alemão então pergunta em russo com um sotaque carregado: - Póchimu vy smeyotis, góspoda?(Por que vocês se riem, senhores?). E o diretor do circo responde: "Deveríamos chorar ou o quê"? Até que o racista deixa o ambiente vaiado e ridicularizado, sendo então preso por milicianos(policiais soviéticos), que o acompanham.
Marion, em prantos, é acolhida pelo seu namorado, Martynov, que a aceita. Os cidadãos soviéticos, impressionados com o bebê negro, cantam para ele uma canção de ninar em diferentes línguas da União Soviética, o russo, a língua mais usada; o ucraniano, a segunda mais usada; o uzbeque, da outra extremidade soviética na Ásia; o georgiano, língua do sul, daquele que criou a primeira constituição da história a criminalizar o racismo, o filósofo, revolucionário, secretário do PCUS e líder da União Soviética J. V. Djugashvili, mais conhecido como Stalin(homem de aço) e pela sua obra antirracista(O marxismo e a questão nacional); em ídiche, a língua dos judeus na União Soviética, que até tinham uma Palestina própria no Extremo-Oriente, a República Autônoma dos Judeus; e novamente em russo. Marion, então, resolve ficar na União Soviética e junta-se a uma grande parada onde ela canta uma famosa canção soviética, na parada é exibido um grande retrato que traz aquele que transformou um país atrasado numa superpotência em todos os campos, inclusive o da igualdade racial.
James Patterson, Lyubov Orlova e Sergey Stolyarov no filme Tsirk, em 1936 |
Alguns fatos curiosos sobre Tsirk(O circo) é que numa das cenas há um Charlie Chaplin, uma homenagem ao famoso comediante. O nome Marion Dixon é uma referência a Marlene Dietrich, que tem as mesmas iniciais, o nome de seu empresário, von Kneishitz, pode ter sido uma referência ao de Marlene, von Shternberg. Os diálogos entre Marion e seu empresário se dão em inglês. James Patterson, afrossoviético nascido em 1933, é filho de um afroamericano que fugiu dos EUA durante a Grande Depressão, tornou-se um oficial do Exército Vermelho na maioridade e depois poeta, deixou a Rússia em 1994, após o fim do socialismo e do golpe de Estado de Yeltsin, indo morar em Washington(EUA) com sua mãe, ucraniana. O pai de J. Patterson foi vítima de racismo na União Soviética, não dos soviéticos, mas dos fascistas alemães, que pretendiam exterminar eslavos e negros! Um bombardeio da aviação nazista em Moscou o feriu, pois ele decidira ficar em Moscou mesmo com o avanço nazista, a exemplo do líder do país, Stalin. Após a "desestalinização", os revisionistas soviéticos fizeram alguns recortes no filme, retirando o retrato de Stalin que aparece ao final durante uma marcha cívica, tendo sido ele exibido recentemente em seu original na TV russa. Em 2011, na Rússia, no Pervom Kanale(Canal 1), o filme ganhou uma versão colorida.
Tsirk, de 1936, foi um filme de vanguarda, que demonstrou os avanços da sociedade soviética, numa época em que os principais países capitalistas promoviam o racismo, o ódio e a eugenia. O filme soviético, que não tem legendas em português, deveria servir de inspiração para a nova geração de humoristas, para rir não do oprimido, mas sim do opressor e conscientizar a população do que é o bom humor, e não a perdição! Ele é uma prova de que é possível fazer humor engraçado, politizado e progressista.
Trecho do filme Tsirk(1936), colorido e legendado(ative no quadrado do menu):
Um comentário:
James Patterson nos dias atuais:
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/3f/PJPatterson.jpg
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