Essa semana, a sociedade brasileira foi chocada por um acontecimento trágico. Um psicopata, armado, assassinou a sangue frio um operário que fazia o seu trabalho. Naturalmente, René da Silva Nogueira Junior não se definia dessa forma, ele se apresentava nas redes sociais como um "CEO cristão, marido e patriota", e a sociedade o via como um "cidadão de bem", o "modelo de sucesso" numa sociedade extremamente materialista onde cada um é julgado segundo os bens que acumulou. A vítima do crime era um operário, pai de família, Laudemir de Souza Fernandes, gari, um lixeiro, mas a sociedade em que vivia vai um pouco mais além, era um "lixo" e por isso sua vida tinha menos valor do que o caminhão que dirigia ou a vassoura que carregava. O motivo do assassinato - o mais fútil possível, o caminhão que recolhia o lixo estava na frente do seu precioso automóvel.
Certa vez, um escritor soviético escreveu um artigo chamado "Humanismo proletário", nele o comunista Alexei Maximovich Peshkov, mais conhecido pelo pseudônimo de "Maxim Gorkiy" (que literalmente significa "Maximamente Amargo", ou talvez uma referência à famosa metralhadora Maxim, mas que dispara o amargo) discutia frases que já em seu tempo, o início do século XX, ressoavam na boca de muitos: "o mundo está doente", "o mundo enlouqueceu". Gorkiy escrevia que "humanidade", "compaixão", "generosidade" são sentimentos não aplicáveis à realidade, já que são difíceis de transformar em mercadoria pois não encontram clientes e prejudicam o crescimento dos lucros comerciais e industriais. Afinal, generosidade não rende dividendos no banco, não pode ser trocada por bitcoins e nem serve para comprar um automóvel elétrico.
Cenas como a que o Brasil viu recentemente não são nenhuma novidade, será que alguém lembra quando o famoso jornalista Boris Casoy, antigo integrante do CCC, ridicularizou garis que lhe desejaram "Feliz Natal!" ao vivo? Num passado não muito distante, os anos 50, surgiu uma denúncia de que indígenas foram usados como alvos para a prática de tiro, tragédia que foi recapitulada pelo cineasta italiano Sergio Corbucci pela sua genial e profunda obra-prima de faroeste italiano "Django", de 1963.
Numa sociedade em que possuir um automóvel é quase uma obrigação para alguém que se considera minimamente digno de se considerar um "ser humano", este item de consumo tem um caráter quase sacrossanto. Nas estradas de muitas cidades do Brasil, alguém que respeita o limite de velocidade é frequentemente perturbado por luzes altas ou buzina de indivíduos "apressadinhos" que consideram como um enorme insulto à sua dignidade e status social, à marca de seu automóvel, ter em sua frente um "idiota" que respeita o limite de velocidade e não lhe abre passagem, como se este fosse alguma espécie de dignatário de renome internacional. Não é raro que tais ocorridos gerem "rixas" e até resultem em assassinatos, como ocorreu em Fortaleza, onde um advogado matou a sangue frio um motorista com quem se desentendeu; no Rio, onde um motorista de uma veículo importado alemão executou um motociclista, ou em São Paulo onde um promotor atropelou vários ciclistas que estavam à frente de seu carro.
Por que será que tais indivíduos, cuja avaliação cabe a um psiquiatra, estão tão apressados? Dizendo-se cristãos, eles estão indo a um encontro com Jesus Cristo? Talvez são profissionais apressados para desarmar uma bomba nuclear? Mesmo em países como a Alemanha, onde a pontualidade é uma relevante regra social, onde carros possuem marcas famosas no mundo inteiro e as estradas permitem ultrapassar os 200km/h, não se percebe tamanhas aberrações no trânsito.
Aliás, falando em Alemanha, Maxim Gorkiy, ainda nos anos 30, nos advertiu para um problema que aconteceu naquele país, que então tinha como símbolo de "sucesso social" não automóveis, mas a farda de organizações nazistas. Gorkiy nos conta no "Humanismo proletário" como Heinz Christen, um adolescente de 14 anos, matou seu amigo Fritz Walkenhorst, um garoto de 13 anos. O assassino contou friamente que cavou um túmulo para seu amigo com antecedência, jogou-o lá vivo e manteve-o com o rosto na areia até que Valkenhorst moresse sufocado. Ele motivou o assassinato dizendo que queria muito ficar com o uniforme de soldado de Hitler que pertencia a Valkenhorst. Isso aconteceu no início do século XX, mas no início do século XXI percebemos que pouca coisa mudou. No Brasil em vez de crianças temos dois adultos, ambos considerados pais de família, mas um deles com dignidade moral e valores em falta na sociedade, foi executado por um motivo absurdamente fútil - "ele estava na frente do carro de um príncipe do sucesso".
Na época de Gorkiy a Alemanha nazista ainda não possuía campos de extermínio e nem havia invadido ainda praticamente toda a Europa. Havia uma sociedade que valorizava a "raça superior" e seus atributos (no caso o uniforme ou distintivo do NSDAP). No Brasil temos uma sociedade diferente, mas com muita coisa em comum, um sociedade capitalista extremamente materialista, consumista, pautada noutro tipo de racismo, não racial, mas social! Ao contrário de muitos países desenvolvidos, que costumam investir no transporte público, muitos brasileiros contraem empréstimos para comprar automóveis, gastando até o último centavo de suas poupanças, se é que tem alguma, para assim serem aceitos como "gente de bem". Costuma-se dizer que "brasileiro adora carro", quando na realidade o que ele adora é o impacto social causado por um.
Longe de querer discutir armas de fogo, um advogado que matou outro motorista em Fortaleza usou uma chave de fenda, o promotor que atropelou ciclistas em São Paulo usou seu próprio veículo como arma, o problema definitivamente não está nas armas de fogo, na região ou na cor do agressor, o problema é uma grande doença social chamada capitalismo, que enquanto existir irá fuzilar, atropelar ou estocar muitas pessoas como Laudemir de Souza Fernandes.
A história da "doença" do capitalismo, como ensinou Gorkiy, começou quase imediatamente após a burguesia arrancar o poder das mãos dos senhores feudais desgastados. Acerca dessa doença escreveram nomes eminentes como Nietsche, Marx, Engels e outros pensadores, mas para quê estudar filosofia se isso é "mera perda de tempo que não gera dividendos na bolsa" como nos ensinam coaches infantis em podcasts? Para quê falar em generosidade, humanidade e compaixão numa sociedade que cultua o consumo e um outro "ismo" que Gorkiy criticou ainda nos anos 30?